Resenha do livro "La machine patrimoniale" de Henri-Pierre Jeudy

JEUDY, Henri-Pierre. 2008. La machine patrimoniale. Belval (France): Circé, 2008. 121 p. ISBN: 97828842422417.  
Cybelle Salvador Miranda [1]


O texto se insere no contexto da reflexão dos pensadores franceses acerca dos excessos da conservação patrimonial, destacando a relação conflituosa do homem com a temporalidade, a alteridade e com os modos de percepção dos objetos musealizados.
O livro do sociólogo Jeudy trata sobre o patrimônio como uma das modalidades contemporânea da reflexividade. Publicado em 2008, o ensaio trata dos temas da patrimonialização, da lógica da atualização patrimonial e sua virtualização. Relacionando o culto atual ao patrimônio como um trabalho de luto face às catástrofes, o autor critica a exaltação da diversidade cultural feita pelos antropólogos como um momento de reflexividade em relação ao outro. O processo de ‘resgate’ das memórias das coletividades serve a exaltação do objeto, que passa a assumir um papel de destaque, numa cultura em que a virtualização afetou decisivamente nossos modos de percepção, como já havia previsto Walter Benjamin (1985) no texto sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Mesclando a dialética com a semiótica, o autor discorre sobre o antropocentrismo europeu e a progressiva redução dos modos de ser diversos, cada vez que estes são trazidos a tona pela estética museográfica, que os desloca de sua existência real.
Os comentários ácidos do autor convergem para o tema do excesso de conservação preconizado pelas sociedades européias contemporâneas, especialmente a francesa, a ‘superabundância de lugares de memória’ que ofereceria uma ‘verdadeira’ garantia contra o esquecimento. O ‘dever de memória’ torna o esquecimento um crime. Como corrobora Poulot (2009. p. 202) “a atualidade impactante da patrimonialização parece ter impedido o questionamento a respeito da construção dessa forma de obrigação relativamente à presença material do passado.” E acrescenta que a recusa ou contestação à patrimonialização é estigmatizada com o termo “vândalo”.
Jeudy adverte que a nostalgia leva a uma morbidez, que pode engendrar um ódio ao patrimônio, quando o excesso de conservação extirpa a vida presente, questionando  a lógica da transmissão do passado que suprime seu fator acidental. E assim “As diferenças temporais entre o passado, o presente e o futuro são aniquiladas graças aos simulacros dessa atualização” (JEUDY, 2008. p.10) A urgência de que nada seja esquecido leva a que o ato da transmissão torne-se meramente mecânico, atribuindo ao objeto um valor simbólico objetivável. O melhor exemplo, segundo o autor, é o dos “tesouros vivos”, os artesãos que guardam o saber fazer de uma técnica antes comum e que é tida hoje como um tesouro a ser conservado, como se houvesse a previsão de uma catástrofe iminente.
Sendo as estratégias de conservação caracterizadas por um processo de reflexão que as justifica, o conceito de patrimônio cultural deve seu significado a uma duplicação museográfica do mundo, colocando uma sociedade em frente ao espelho. Cita a frase de Michelet usada por Benjamin em “l’ Exposé de 1935” “ Cada época sonha a seguinte”, como contraponto ao processo de ‘reflexividade’ que tem por objetivo a manutenção da ordem simbólica das sociedades modernas. Assim, o presente sonha o passado, atualizando-o, num eterno círculo de repetição.
E a perspectiva patrimonial se confronta com uma contradição: o do valor simbólico que precisa conviver com o valor de mercado dos bens culturais. O processo de ‘reflexividade’ não é universal, pois nas culturas orientais os bens se integram no processo permanente de sua utilização, de sua existência.
Assim, “a resistência ao esquecimento impôs uma objetivação racional da memória individual e coletiva.” (JEUDY, 2008. p. 35), tirando do homem o caráter aleatório e emocional da memória involuntária. O texto de Jeudy dialoga com a discussão sobre a criação de ‘lugares de memória’ para substituir a ausência da memória, feita por Pierre Nora no texto “Entre memória e história: a problemática dos lugares” (1993), em que a atribuição de um dever de memória a certos lugares consiste no mecanismo de que se utilizam as sociedades contemporâneas para lidar com a progressiva decomposição das comunidades baseadas na transmissão oral pela sociedade ‘historicizada’.
Jeudy aponta que, cada vez que os habitantes de uma comunidade participam da construção de tal espetáculo, a pretexto de assegurar a sobrevivência das memórias coletivas, sua participação leva a crer que é algo autêntico, uma recriação e renovação da sociabilidade. Podemos citar como exemplo concreto o caso do Rancho Folclórico do Porto, no qual a autenticidade da manifestação é atestada pela participação dos membros da comunidade, muito embora estas apresentações se tornem simulacros de ‘tradições’ já extintas, como os pregões, e relatadas em formato de histórias narradas aos ‘estrangeiros’ - os turistas - como evocações ancestrais que talvez os próprios nativos não tenham sequer vivenciado.
Nesse contexto, a crítica do autor quanto ao ‘recanto patrimonial dos etnólogos’ aborda a multiplicação dos objetos nas pesquisas promovidas por estes, que passam a dedicar-se a uma etnologia do ‘não exótico’, sendo que a despeito de uma reflexão epistemológica, usam a descrição como um método.             Circunscreve suas críticas especificamente a antropologia francesa, que “usa o seu saber como um verdadeiro patrimônio!” (JEUDY, 2008. p. 45)  Acusa, portanto, os antropólogos de terem criado a situação atual de patrimonialização que tornou-se uma expressão da modernidade. Esse processo leva a uma destruição das culturas vivas, seguida de sua musealização, e da construção de novas heterogeneidades culturais que serão também objeto de patrimonialização futura.
A discussão sobre a alteridade é aqui importante, quando na segregação em campos de refugiados as pessoas perdem sua identidade e passam a ser ‘o outro’ em relação ao povo que os acolheu, bem como os indígenas americanos que representam as etnias em vias de desaparecimento: “Do parque natural à reserva indígena, o princípio permanece idêntico: as etnias, como as espécies em via de extinção, devem ser protegidas a fim de que a humanidade mantenha o espelho de sua própria história.” (JEUDY, 2008. p. 54-55) Assim, o reconhecimento das diferenças e sua exposição servem ao controle do ‘outro’.
Jeudy discute também o poder dos objetos para a transmissão do patrimônio: atesta sermos todos reféns de uma transmissão governada pelos objetos. E para nos prevenir contra seus sortilégios, os colocamos nos museus, como faz-se com a escultura primitiva, que não tem relação temporal, servindo de ligação com os mortos, criando uma ordem discursiva diferente daquela que produzimos no mundo ocidental.
Da relação entre patrimônio e catástrofe, reflete sobre a necessidade de edificar monumentos em memória de vítimas de acidentes, como as cruzes postadas nas estradas para lembrar os mortos, o que invoca o reconhecimento público de um sacrifício. Não se trata de evitar o esquecimento, mas de dar um sentido póstumo à memória do morto, um sentido que pode ser atualizado. Ao contrário do que pensa Manguel (2001) no texto “Peter Eisenman: a imagem como memória”, o autor acredita que uma obra de arte pode representar a memória dos mortos em uma catástrofe, e que esses se assemelham aos vitimados por guerras, à medida que “O que se torna memorável, não é o evento por si mesmo, é o reconhecimento do sacrifício involuntário” (JEUDY, 2008. p. 86-87).
O sentido agudo da patrimonialização pode ser mostrado no caso do sem-teto que demandou a inscrição da sua casa de papelão no Inventário dos monumentos históricos franceses. No verão de 2000 foi realizada uma instalação do entorno da Catedral de Notre Dame, na qual os sem-teto foram convidados por um artista a se instalar no local e fazer uma performance pública simplesmente por sua presença, tornando-se o que Jeudy denomina de ‘artistas da vida social em situação pós-catastrófica’. O rótulo cultural serve então de ‘válvula de escape’ à gestão do social. O tratamento estético que eles recebem só faz reforçar a presença do ‘outro’, o primitivo dos tempos modernos. Isso é simbólico quanto à antecipação da conservação patrimonial.
Outro exemplo do culto ao patrimônio é a conservação das ‘casas de coelho’, edifícios construídos nos anos 60 do século XX na França, tratados como ‘lugares de memória’, sendo alguns exemplares preservados para servir de lembrança. Isso nos leva a pensar no que deverá ser destruído um dia, como cita Claude Parent, uma sociedade que recusa a ter em conta as destruições necessárias a sua evolução é uma sociedade morta. Pensar a destruição é o futuro da conservação, pois que os excessos contemporâneos conduzirão a produção de suas próprias ‘ruínas do futuro’.
A autenticidade dos objetos será questionada em face da existência de cópias, pois, “Na era da reprodutibilidade infinita, o falso se impõe por ele mesmo pois que não se enquadra mais na categoria de cópia, de réplica, mas de virtual e da clonagem” (JEUDY, 2008. p. 111-112) Diante das mudanças de percepção atuais, o verdadeiro não se opõe ao falso, no sentido moral, gerando a pergunta “A clonagem anuncia a suspensão de morte da conservação patrimonial?”
Questiona então ‘Como fazer ressurgir nos museus a experiência corporal originalmente ligada aos objetos?’ Jeudy conclui que é ingênuo pensar que a virtualização não mudou a forma de percepção do homem, contudo, a equivalência temporal produzida não substitui a experiência simbólica dos objetos. Essa nos parece ser uma reflexão central no panorama atual da Cultura, como lidar com as mudanças na percepção do homem contemporâneo, garantindo o acesso ao passado sem arcaísmos.
REFERÊNCIAS 
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua Reprodutibilidade técnica. In:  Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985.
MANGUEL, Alberto. Peter Eisenman a imagem como memória. In: Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História n°10 Revista do PPGH/PUC-SP dez. 1993 p.7-28
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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[1] Arquiteta e urbanista, Doutora em Antropologia, Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, UFPA. cybelle@ufpa.br

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