A ASSISTÊNCIA DO HOSPITAL DA MISERICÓRDIA DE MANAUS EM TEMPOS DE EPIDEMIA


Camyla Torres (Mestranda PPGAU/UFPA e bolsista FAPEAM)

Ao longo da história da humanidade, as várias epidemias ocorridas no mundo foram propiciadas pelo surgimento dos aglomerados populacionais, novas rotas de comércio, movimentos migratórios, dentre outros. Na distribuição espaço-temporal, as doenças e suas consequências mobilizaram grandes esforços para a implementação de ações médico sanitárias, sociais e econômicas, cujas consequências promoveram profundas transformações nas sociedades.

Desde o início de 2020 vivemos um momento específico e histórico por conta da pandemia do novo Coronavírus, a COVID-19, que segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, constitui-se em uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, o mais alto nível de alerta, contaminando mais de 2.314.621 casos e 157.847 mortes, contabilizados até o dia 20 de abril de 2020. O Brasil, na mesma data, registrou 40.581 casos confirmados da COVID-19 e 2.845 mortes. 

Para se entender este cenário de pandemia, é importante compreender os fenômenos semelhantes já ocorridos no passado e assim, ao se estudar as ações do Estado e das instituições através das epidemias, revelam-se detalhes da vida nas cidades, as formas de organização social da população neste espaço, os discursos oficiais e o papel dos hospitais e socorros públicos no trato das doenças infectocontagiosas e na diminuição de sua transmissibilidade, principalmente entre as camadas populacionais mais suscetíveis às doenças epidêmicas. 

Apesar de afetar a população sem distinções, as epidemias deixavam um rastro maior de mortalidade nos habitantes das áreas mais pobres das cidades, que viviam em péssimas condições sanitárias e sem assistência médica eficaz. Como já falado anteriormente, esse conjunto de fatores torna o ambiente propício ao alastramento de epidemias, tanto no passado como nos dias atuais. 

No Brasil, desde o período colonial, as instituições leigas e religiosas como as irmandades e confrarias desempenharam um papel importante no acolhimento e trato dos indigentes e desvalidos, adjetivos estes utilizados de forma recorrente para designar a massa populacional excluída pelo modelo de sociedade estabelecido no país. Em diversos momentos da história, os discursos nacionais atrelados aos ideais de civilização e progresso moldaram um sistema que passou a estereotipar os indivíduos que não se encaixavam ou que não se submetiam a esse modelo de exploração imposto pela elite. 

No Amazonas, ao se resgatar a memória epidemiológica de Manaus desde o século XIX, percebe-se tanto a atuação de personagens importantes nas ações e respostas aos episódios quanto o papel desempenhado pelos socorros públicos no combate e contenção das doenças na população, como a Santa Casa de Misericórdia de Manaus. 

Esta secular instituição de assistência à saúde surgiu no período provincial do Amazonas como Hospital da Caridade, tendo sua pedra fundamental lançada em 1º de janeiro de 1873 no terreno delimitado pela rua do Congresso, rua de José Clemente, continuação da travessa nova da Matriz e a primeira travessa ao ocidente do Largo São Sebastião, que ainda é até hoje sua atual localização. Até 1879, o Hospital da Caridade ainda encontrava-se em obras e nesse momento iniciou-se a organização de uma comissão para a criação da futura Santa Casa de Misericórdia de Manaus, que foi instituída em caráter de irmandade através da Lei Provincial nº 451, de 04 de abril de 1880. 

Seu edifício sofreu inúmeras ampliações e melhoramentos por conta do aumento de suas atividades de assistência e caridade, tendo como causa o crescimento populacional gerado pelo ciclo de exportação da borracha, ao aparecimento de epidemias que requeriam espaços de isolamento e pelas ações de recolhimento de indivíduos que foi instituído pelos códigos de posturas, que proibia dentre outras questões, a presença dos “indesejáveis” no espaço da cidade, como mendigos, órfãos, desempregados e doentes. 

Seu aspecto atual deu-se em reforma sofrida na segunda década do século XX, nas gestões dos provedores Leopoldo de Mattos e Aluysio de Araújo, ampliando-se os espaços de internação e tratamento, acrescendo um novo pavimento, incluindo acomodações de luxo para pensionistas de 1ª e 2ª classe e executando tratamento paisagístico nos jardins externos e internos.

Figura 01 - Nova fachada da Santa casa de Misericórdia em 1930. Fonte Revista da Associação Comercial do Amazonas (ACA), de 10 de fevereiro de 1930.

Ao se pesquisar a história das epidemias no Amazonas, esbarramos na carência de fontes documentais que indiquem as reais proporções que estas doenças tomaram na região, principalmente a contabilidade correta do número de infectados e dos óbitos. Ainda assim, é possível afirmar que surtos epidêmicos ocorreram de forma menos agressivas ao longo dos séculos XVII a XIX e que o Amazonas tenha permanecido de certa forma incólume até meados dos séculos XIX devido ao isolamento geográfico do estado e a dispersão de sua população ao longo do território. 

Apesar de sua construção ter sido iniciada no final do século XIX, a Santa Casa de Misericórdia ainda não mantinha centralizadas em seu hospital as ações de combate às epidemias que chegaram na região nesse período como varíola, sarampo, febre amarela e febres paludes. A Provedoria de Saúde da província, instituída durante o surto de cólera no Amazonas em 1855, instalava enfermarias para o isolamento e tratamento dos acometidos, que logo eram desmobilizadas tão logo as epidemias cessavam. 

Todavia, o trabalho desse nosocômio no socorro à população dos desvalidos e indigentes de Manaus, e posteriormente, aos demais como pensionistas, cumpria não somente os ideais de caridade cristã aos quais estava comprometida, mas também demostrava a ação da caridade na saúde pública para suprir as deficiências do Estado no tocante à oferta de assistência médico-hospitalar, alimentação, vestuário e serviços sociais. 

A seguir serão analisados alguns casos epidêmicos e o trabalho da santa Casa de Misericórdia de Manaus: 

Gripe espanhola 

A gripe espanhola ou influenza foi a maior epidemia registrada na história, infectando mais de um quinto da população mundial, infectando cerca de 20 a 40 milhões de pessoas. Em Manaus, a gripe “chegou’ no dia 24 de outubro de 1918, transportada no vapor Valparaíso que atracou no porto dos Educandos com 17 enfermos. Os primeiros doentes foram levados para a Santa Casa de Misericórdia de Manaus e diversas medidas profiláticas já começaram a ser implementadas pelo governo como a proibição da comemoração do dia de finados, fechamento do comércio, proibição dos jogos esportivos, visitas aos hospitais e celebrações que provocassem aglomerações. 

Nesse período, a cidade já havia passado por profundas transformações urbanas, financiadas pelo lucro da exportação da borracha, mas apesar desses melhoramentos e do ordenamento social e espacial que os códigos de posturas impunham, a capital do Amazonas ainda escondia por detrás de avenidas pavimentadas e imponentes prédios públicos, a insalubridade das residências e as péssimas condições de vidas da população mais carente que foram afastadas do centro e locadas nos arrabaldes da cidade. 

Com o crescimento vertiginoso dos infectados pela gripe, a partir do dia 02 de novembro do mesmo ano, a Santa Casa passou a não aceitar mais pacientes já que se encontrava sobrecarregada e a solução foi criar enfermarias e novos postos de isolamento para auxiliar nos trabalhos de socorro. Com o aumento da mortalidade, o necrotério do hospital proibiu a entrada de corpos de gripados, visto a insuficiência de carros fúnebres para cobrir a demanda de enterramentos e para evitar a contaminação dos moradores próximos ao hospital e de curiosos que se aglomeravam para observar os cadáveres. Estima-se cerca de 6 mil óbitos pela gripe espanhola em Manaus. 

Hanseníase 

A partir do século XX, a hanseníase, outrora conhecida como lepra, passou a se apresentar como um problema sanitário internacional. Registrada desde os tempos bíblicos, a incidência de hanseníase no Amazonas pode ser dividida em três fases: de 1889 a 1907, de 1908 a 1921 e de 1922 a 1929. No primeiro período, os doentes eram tratados na Santa Casa de Misericórdia sem nenhuma política de isolamento e distinção em relação aos outros doentes, já que o hospital não dispunha de locais adequados para este tratamento. O momento também foi caracterizado pela intensa migração de trabalhadores para o Amazonas em busca de trabalho no processo produtivo da borracha, aumentando, assim, a propagação da doença e tornando os espaços da Santa Casa insuficientes. 

Na segunda fase, os doentes foram isolados no hospital do Umirizal, uma colônia criada no século XIX para a instalação dos acometidos de varíola. Mesmo sob a responsabilidade do Serviço Sanitário Estadual, a provedoria da Santa Casa de Misericórdia fornecia dietas e medicamentos para o Umirizal, às expensas do Estado. A terceira fase da epidemia caracterizou-se pelo aumento nos casos de hanseníase no Amazonas, sendo que no censo realizado nesse período apontou cerca de 800 doentes, em sua maioria indivíduos no contexto rural ou nos seringais, que desconheciam a forma de contágio e não tinham acesso a medidas sanitárias adequadas. 

Tuberculose 

A tuberculose, também conhecida como peste branca, instalou-se no Brasil desde os tempos da colonização, contudo, foi a partir do século XX que começou a ser tratada no meio científico como um problema de saúde. O tratamento aos pacientes tuberculosos nas dependências das Santas Casas de Misericórdia contribuiu fundamentalmente no controle da doença até a criação dos dispensários e o desenvolvimento de políticas públicas específicas. 

Em Manaus, o Hospital de São Sebastião, antigamente localizado na Rua Ramos Ferreira, era administrado pela Santa Casa de Misericórdia, e prestava assistência aos doentes acometidos pela tuberculose. Na década de 30, a doença apresentava transmissão contínua tanto no Pará como no Amazonas, sendo que em 1936, ocupou o segundo lugar no obituário logo após o paludismo, contudo, muitos casos contabilizados na rubrica do paludismo poderiam ser referentes à tuberculose, segundo a estatística santuária da capital. Neste mesmo estudo, é informado que 85 indivíduos deram entrada no Hospital São Sebastião, dos quais apenas 4 eram pensionistas, com o registro de 54 óbitos.

Figura 02 - Hospital São Sebastião em setembro de 1933. Fonte: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC/Fundação Getúlio Vargas. 

Infelizmente no momento atual, a Santa Casa de Misericórdia de Manaus encontra-se fechada e seu edifício apresenta as marcas deixadas pelo abandono e degradação, contudo, de certo suas paredes de pedra, pisos e alicerces enquadram a memória do seu funcionamento e do árduo trabalho de auxílio à população nos tempos de doenças, principalmente a assistência das camadas mais pobres. Sua proposta de reabertura como uma instituição de ensino voltada para a saúde poderá manter seu significado como um local de referência na história da saúde e medicina do Amazonas. 

É bom lembrar que o passado está sempre se apresentando no presente, nos mostrando o que já superamos. 



PARA SABER MAIS: 

AMARAL, Josali do. Ritmos e Dissonâncias: Controle e disciplinarização dos desvalidos e indigentes nas políticas públicas do Amazonas (1852-1915). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras. Manaus, 2011. 

CARVALHEIRO, José da Rocha. Epidemias em escala mundial e no Brasil. Estud. av., São Paulo , v. 22, n. 64, p. 7-17, Dec. 2008. Acesso em 08 Abr. 2020. 

COSTA, Cybele Morais da. Socorros Públicos: as bases da Saúde Pública na Província do Amazonas (1852-1880). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras. Manaus, 2008. 

GAMA, Rosineide de Melo. Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos jornais de Manaus (1918 – 1919) Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras. Manaus, 2013. 

LOUREIRO, Antônio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. 2 ed. Manaus: Editora Valer, 2007. 

MACIEL, Marina de Souza; MENDES, Plínio Duarte Mendes; GOMES, Andréia Patrícia; BATISTA, Rodrigo Siqueira. A história da tuberculose no Brasil: os muitos tons (de cinza) da miséria. Rev. Bras. Clin. Med. São Paulo, 2012 mai-jun;10(3):226-30. 

SILVA, Júlio Santos da. Adoecendo na cidade da borracha: Manaus (1877-1920). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras. Manaus, 2012. 

SCHWEICKARDT, Julio Cesar; XEREZ, Luena Matheus de. A hanseníase no Amazonas: política e institucionalização de uma doença. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.22, n.4, out.-dez. 2015, p.1141-1156. 






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