Resenha Cultural: Faust de Sokourov
Resenha desenvolvida por Cybelle Salvador Miranda sobre o filme "Fausto", do diretor russo Alexander Sokourov, em cartaz no mês de outubro no Cine Estação das Docas.
Cena do filme Fonte: www.sddistribution.fr
Fausto é um homem sem tempo.
Na versão de Sokourov, as imagens sombrias e esfumaçadas nos transportam a um
lugar que não se define cronologicamente: homens de cartola e fraque caminham
por vielas de um vilarejo rural, no qual personagens deslocam-se em carruagens.
Casas em enxaimel e métodos primitivos de tratamento as enfermidades. Fausto é
um homem universal – médico, astrônomo, filósofo, mas que, a despeito de seus
conhecimentos, não consegue viver com o que pensa ser a justa recompensa a seus
dotes.
Questionamentos universais
unem-se com conflitos psicológicos e desajustes familiares, visível tanto nos
pontos de vista contrários acerca do dinheiro presente entre Fausto e seu pai,
cujas máximas de ascetismo e simplicidade não o contentam, quanto na confissão
de Margarida, que revela detestar a mãe.
Fausto parte em sua busca
pelo ouro, e vai ao encontro de seu destino ao buscar o usurário Mauricius (o
sombrio) para a penhora de um anel, outrora precioso, mas que então não tem
valor. Desencantado com a vida, o personagem encomenda cicuta para uma morte
rápida, mas no momento do suicídio chega o sombrio, que toma o veneno em seu
lugar.
A partir deste episódio
Fausto tornar-se-á discípulo do pequeno asqueroso, em sua busca infrutífera por
fama e luxúria. Incomodado pelos efeitos intestinais do veneno, Mauricius entra
na igreja, e conversa ao pé do ouvido do padre, oferecendo donativos. Pois, ele
tem certeza, Deus existe!
Os personagens seguem
esgueirando-se, imprensando-se, apertando-se, numa inconformação incômoda com a
vida terrena. Seja as ultrapassar o vão sob um arco em sentido contrário a um
funeral, ou ao descer de uma carruagem, as situações de conflito são
freqüentes, e se projetam para fora da tela. Altenam-se imagens distorcidas, em
sequências que se definem pela paleta cromática, que oscila entre tons
esverdeados e acinzentados, em que a nitidez, a iluminância e as sombras
exercem seu papel dramático.
O mundo é caótico. E a alma –
o que é, quanto vale? As perguntas iniciais de Fasto seguem sem resposta. No
trajeto da dupla, a segunda estação é uma lavanderia onde mulheres ocupam o
tempo, cansando o corpo e assim ocupando a existência. O que parece uma lição
moral de Mauricius, na verdade é uma armadilha: Fausto vislumbra pela primeira
vez Margarida. Ela, a jovem com o rosto das musas de Botticelli, cuja face
resplandece de luz, torna-se objeto de desejo do protagonista.
Caminhando novamente pela
estrada, chegam a uma taverna, na qual encontram um grupo de soldados
retornados da guerra. Em meio a bebida e ao tumulto, Mauricius impulsiona
Fausto a matar Valentim, irmão de Margarida.
Neste instante o coração de
Fasto é dominado pela culpa – sente-se obrigado a reparar a perda à família do
falecido. Mauricius suborna a mãe do rapaz, e assim Fasto se aproxima de sua
vítima. Enfeitiçado pela beleza e pureza da jovem, assina com o próprio sangue
o contrato no qual, as separar a alma do corpo, doa aquela ao demônio.
Após consumar seu desejo
carnal, Fausto é orientado a fugir, e recebe de Mauricius uma armadura,
deixando a jovem como principal suspeita pela morte da mãe. Num cenário escuro
e penoso, seguem os dois, em meio a esguichos de água fervente e o demônio
declama sua profecia: o pior inferno é vagar pelo mundo sem ter com quem se
comunicar.
Por isso o Evangelho segundo
São João declara: No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus; e o
Verbo era Deus.
Neste limbo, Fausto
reencontra o rapaz assassinado, que o agradece. Porque? Pergunta ele. A vida é tantas vezes
penosa que a morte é o descanso. Pior que o sofrimento do corpo, porém, é o eterno
vagar das almas, na sua eterna solidão.
O refinamento formal da
direção não se torna mero formalismo, sendo uma estética correlata ao drama, um
hermetismo que convida a reflexão e a concentração, numa tortura psíquica que
não nos deixa incólumes. Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio,
principalmente depois de Fausto-Sokourov.
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