O Asilo das Madalenas
Por José Maria de Castro
Abreu Jr.*
A
história dos lugares de alguma forma tenta resistir às modificações e, às
vezes surpreendentemente, consegue se preservar parcialmente em objetos que
insistem em permanecer em espaços que se trasnformaram com o passar dos anos.
Qualquer um que atravesse a entrada
principal do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB) se depara
com uma imagem de São Sebastião, mas poucos têm idéia que aquele santo está ali
muito antes do hospital sequer existir, testemunha silenciosa dos dias que há
muito se foram.
Aquela peça sacra talvez seja tudo o
que restou do Hospital São Sebastião, um dos hospitais que havia ali naquele
lugar, juntamente com o Domingos Freire e o São Roque, este funcionava nas
proximidades, em uma casa alugada. Todos desaparecidos praticamente sem deixar
rastros, como que amputados da memória coletiva.
Cada um merecia ser abordado
individualmente. Entretanto, por suas próprias peculiaridades e por representar
um período da Saúde Pública no estado, abordaremos aqui o Hospital São
Sebastião.
Construído em apenas três meses para
isolar os pacientes com varíola por volta de 1900 pela firma Manoel Pedro &
Cia, era uma edificação pavilhonar de madeira, pintada em tons claros, medindo
120 metros de comprimento por 22 de largura projetada pelo engenheiro Luiz
Maximino de Miranda Corrêa sobre indicações do governador e também médico José
Paes de Carvalho. Constituía-se de três corpos independentes uns dos outros
ligados por varandas cobertas.
No primeiro corpo estavam à recepção,
aposentos das enfermeiras, capela sob a invocação de São Sebastião, farmácia e
gabinete do médico. No segundo ficavam as grandes enfermarias e no terceiro estavam
os quartos particulares para pensionistas, refeitório, cozinha e dispensa.
Tinha água encanada e luz elétrica, coisa pouco comum na época, ainda mais
levando-se em conta sua distância do centro da cidade.
Era administrado pela Santa Casa de
Misericórdia até o ano de 1921, quando adquire nova função ao ser cedido ao
serviço sanitário do Estado. O médico Heráclides César de Souza Araújo, então
chefe do Serviço de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas no Pará, instala
ali o hospital de isolamento para contagiantes venéreos, destinado
exclusivamente para o tratamento de meretrizes.
Como as irmãs de caridade que
administravam o hospital se recusaram a prestar assistência à nova clientela, Heráclides
fez com que as freiras desocupassem o estabelecimento, que passou a ter
administração leiga e logo teve sua capacidade ampliada de 35 leitos para 80. O
médico Raimundo da Cruz Moreira assumiu a função de diretor e o estabelecimento
ganhou o apelido de “Asilo das Madalenas” denominação pelo qual ficaria
conhecido nesta nova fase.
Na época cabia à polícia fazer o
recenseamento de todas as meretrizes da capital, as quais se tentava que
ficassem localizadas em um único bairro da cidade, as chamadas “zonas”. Estas
possuíam cadernetas de identidade fornecida pelo Instituto Médico Legal com o
seguinte cabeçalho “Serviço Medico-Policial das Meretrizes, profilaxia das
doenças venéreas e fiscalização da prostituição”, daí talvez advenha à
expressão “fulana é prostituta de carteirinha”.
Estas eram obrigadas a se apresentarem semanalmente para exame médico no
Instituto de Profilaxia das Doenças Venéreas. Havia 772 “mulheres públicas”
matriculadas
O Instituto funcionava no mesmo prédio
onde hoje se localiza a Academia Paraense de Letras na rua João Diogo. Das oito
às doze horas eram atendidos homens, mulheres e crianças e o turno da tarde era
dedicado ao atendimento exclusivo das meretrizes; todo serviço era gratuito. O
prédio era bem equipado possuindo nos jardins inclusive biotério com carneiros
que forneciam sangue para reação de Wassermann.
As prostitutas que apresentassem
doenças necessitando de isolamento eram internadas compulsoriamente no Hospital
São Sebastião, mas segundo o próprio Heráclides de Souza Araújo em relatório,
no final das contas o resultado era sempre positivo. “De regra elas saem saudosas, e voltam muitos
domingos a fio, visitar o estabelecimento e levar mimos as enfermeiras”,
escreveu, afirmando ainda que muitas vezes era o hospital que lhes matava a
fome, sendo comum que algumas se oferecessem para permanecer prestando serviços
voluntários apenas em troca de comida.
A maioria dos casos admitidos era de
lesões sifilíticas ou neisséricas.
Nesta nova fase as instalações do
Hospital foram ampliadas e algumas salas receberam nomes como “Sala Eduardo
Rebello”; a recepção passou a se chamar “Carlos Chagas”; as enfermarias ficaram
conhecidas como “Gaspar Viana”, “Werneck Machado” e “Silva Araújo”. Também foi
criado um laboratório de pesquisa bacteriológica denominado “Oswaldo Cruz”, uma
sala de pequenas cirurgias denominada “Souza Araújo”, uma moderna lavanderia
com estufas francesas da marca Geneste, Hercher & Comp., para desinfecção
de roupas ao calor de 120 graus, e banheiros especiais para tratamento
sulfuroso das dermatoses seguindo os modernos preceitos médicos de uma era
pré-antibióticos.
Aliás, lutar contra infecções
bacterianas e treponêmicas numa época em que a penicilina não era sequer
sonhada constituía-se em um grande desafio para o médico e um grande tormento
para o paciente. O tratamento era à base de lavagens vaginais, uretrais e
vesicais, banhos sulfurosos e com permanganato, curativos, cauterizações,
injeções intravenosas de Neosalvarsan, intramusculares e subcutâneas de sais
mercuriais, sais de quinino, óleo canforado, estricnina, ergotina, adrenalina e
morfina. Havia, também, espaço para modernidades médicas da época como aplicações
de “Eletricidade Farádica”, o que hoje conhecemos como “bisturi elétrico”.
É claro que um programa de saúde que
previa um hospital destinado à “mulheres públicas” era uma questão polêmica por
natureza. Souza Araújo defendia-se argumentando que não se tratava de uma apologia
à prostituição, mas uma questão puramente de saúde pública e vigilância
sanitária. Planejava inclusive no hospital um curso de alfabetização para as
pacientes e atividades de reabilitação como corte e costura ou outros ofícios
que pudessem reintegrá-las à sociedade.
Reconhecia ainda as dificuldades do
programa em cadastrar as ditas cortesãs de luxo, que definia como mulheres
recebiam em casa “certos amigos” e que freqüentavam, “às vezes”, uma casa de “rendez-vous”.
Quando muito, conseguia que elas freqüentassem o Instituto duas vezes por mês,
desde que não fossem fichadas pela polícia e fossem atendidas no horário da
manhã, turno que era dedicado as ditas
“pessoas comuns”.
Embora a atitude de segregar as
prostitutas possa soar, hoje, como politicamente incorreta, o fato deve ser
analisado dentro de seu contexto histórico, sabendo-se que pelas primeiras
décadas do século XX uma onda higienista-eugênica, de certo modo, teve seu
momento no Brasil conquistando muitos adeptos, principalmente entre os
formuladores das políticas de saúde. E como a descontinuidade das ações é a
principal característica dos programas de saúde pública no Brasil, o Hospital
São Sebastião pouco tempo depois foi transformado em referência para tratamento
de tuberculose, as diretrizes propostas por Souza Araújo foram abandonadas e as
doenças venéreas passaram atender pela sigla de DSTs (doenças sexualmente
transmissíveis).
Anos depois, em 1959, já considerado
como “imprestável para qualquer finalidade” e “inteiramente inadequado à função
que lhe foi emprestada a título precário”, o velho hospital foi demolido.
Alterar a referência de um hospital de
acordo com as necessidades epidemiológicas da ocasião, sem se preocupar com
ações que tenham continuidade e mudar o nome de doenças pode até alterar os
números oficiais, mas nem sempre se traduz em modificações para melhor no
perfil epidemiológico de uma comunidade. Uma lição de política sanitária que
até hoje parece difícil do poder público assimilar.
Bibliografia:
A
Província do Pará, 8 de novembro de 1959. Pg 8.
SOUZA
ARAÚJO, H. C. de. A Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas no Estado do
Pará. Vol II. Livraria Clássica. Belém-Pará. 1922.
VIANNA,
Arthur. As Epidemias no Pará. Coleção Amazônica. 2ª edição. Série Camilo
Salgado. EDUFPA. Belém-Pará. 1975.
_______________A
Santa Casa da Misericórdia Paraense – Notícia Histórica 1650-1902. 2ª Edição.
Série Lendo o Pará II. SECULT. Belém-Pará. 1992.
Foto 1:
Hospital São Sebastião (SOUZA ARAÚJO, 1922).
Foto 2:
Instituto de Profilaxia das Doenças Venéreas (SOUZA ARAÚJO, 1922).
Foto
3: Capa de uma carteira de identificação de meretriz (SOUZA ARAÙJO, 1922).
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