Crônica do filme UM LUGAR SILENCIOSO - DIA UM

 

Cybelle Salvador Miranda

Doutora em Antropologia

Pesquisadora PQ 2 CNPq

Coordenadora do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (LAMEMO)

Líder do Grupo Arquitetura, memória, etnografia AME

 

 

Paramount Pictures

 

Ao findar a película, me faço a pergunta: Qual a personagem central da trama?

A história, dirigida e roteirizada por Michael Sarnoski, inicia com uma panorâmica de Nova York, a metrópole símbolo do mundo civilizado. E o comentário sobre o ruído produzido que alcança 90 db, o mesmo que um grito contínuo.

A primeira sequência desenvolve-se num asilo para doentes terminais, durante uma reunião de grupo em que se destaca a fala de Samira (Lupita Nyong'o), que recita uma poesia de sua autoria, expressando raiva e descontentamento com sua condição e com o local em que reside. O enfermeiro chefe a convida para um passeio – e ela condiciona sua ida a comer uma pizza “na cidade”. Tomam o ônibus e, no trajeto, passam por um extenso cemitério até adentrar a ponte, da qual se avista a cidade, gerando satisfação na jovem, tomada pela nostalgia.

O destino é um pequeno teatro, no qual se encena uma peça com marionetes – sem fala. A seguir, inicia a catástrofe a assolar a cidade e, subitamente é vital ficar em silêncio, para não ser identificado pelos seres invasores.

Sam e o gato Frodo, um ser silencioso e fiel, lutam pela sobrevivência, recolhendo alguns itens básicos numa sacola com os dizeres I love NY.

Enquanto levas de pessoas se dirigem ao porto - cujos semblantes vazios nos remetem aos judeus conduzidos aos campos de concentração - na expectativa de serem resgatados em barcos, ela segue em busca de comer a fatia de pizza no Harlem. Após ajudar dois irmãos menores, se agrega a ela um rapaz, Eric (Joseph Quinn), solitário e em crise de pânico. Chegam ao apartamento de Sam e ela revela que o pai era pianista de jazz e a levava para comer pizza após as apresentações num bar.

Ciente de sua fragilidade, Sam avança com Eric nas galerias subterrâneas até se abrigar em uma igreja católica ortodoxa. Nesse episódio, não há como deixar de citar a pergunta de Brissac Peixoto¹: No mundo contemporâneo, ainda é possível construir catedrais? Esse lugar simbólico e cheio de imagens se une à livraria, que, desordenada, atrai Sam para folhear alguns exemplares jogados na calçada.

Na jornada rumo à experiência da infância, Eric partilha com Sam a tão desejada pizza, que ambos consomem como uma última ceia. Fazei isso em memória de mim, e de todos os que partiram, parecem dizer. Numa das muitas referências às narrativas bíblicas, Sam atrai a atenção dos monstros para que Eric possa se salvar, levando consigo o gato. Autoimolação em prol da salvação da humanidade?

No roteiro impregnado pela cultura judaico cristã, Sam segue seu destino, enfrentando desafios do calvário até a última ceia, comunhão de pão e vinho (pizza e uísque). Os barcos que levam refugiados, numa epopeia aos avessos, é a Arca de Noé, construída para salvar os eleitos da grande destruição.

Na cena final, Sam põe os fones, e diz que, afinal, a cidade tem muito a proporcionar, basta que se faça silêncio para ouvi-la. E, ao som da magnífica Nina Simone, Feeling good, exalta a esperança num mundo melhor. Penso que aí se encontra a resposta, a cidade pós-pandêmica ressurge ainda como repositório de memórias em que os pequenos pontos de encontro cotidianos ancoram as vivências dos sujeitos, na Big apple, catedral do novo milênio. 

¹ PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Senac/ Fapesp,1996.


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