Resenha Cultural: Um Homem de Duas Vidas (Toto le Héros, 1991), de Jaco van Dormael

                Trata-se de um belo filme que mereceu o prêmio de melhor diretor estreante no Festival de Cannes de 1991. O diretor belga Jaco Van Dormael, desde as primeiras cenas revela-se um realizador seguro (consta que sua experiência anterior era de clips publicitários, o que certamente lhe forneceu a base para uma linguagem cinematográfica sintética e objetiva). A partir de roteiro original, Um homem de duas vidas (Toto le héros, no original) o diretor constrói uma obra usando narrativa alinear, densamente poética, sensível, mesclando sonho e realidade. A estória é narrada na primeira pessoa, e segue um estilo acronológico, isto é, os fatos narrados não obedecem a uma sequência lógica, mas sim a lógica do inconsciente, onde todas as peças enigmáticas de um quebra-cabeça se encaixam. Em síntese, a estória aparentemente simples é de um homem comum, como qualquer cidadão da classe média ocidental cristã, profundamente infeliz com a mediocridade cotidiana, só abalada por alguns episódios tragicômicos. O personagem insatisfeito com o quinhão que lhe coube na vida, sentindo-se amargurado e injustiçado desde a infância (quando a mãe o teria trocado por engano num incêndio do berçário por outro bebê, arquiteta um plano, com cumplicidade da irmã, de matar seu maior rival).
 
Cena do filme
                A partir daí, o filme segue a trajetória divergente das duas vidas paralelas, sob a ótica do personagem já idoso, internado num asilo, rememorando os episódios marcantes de sua vida, da infância a morte, sempre pautado pela idéia obsessiva de trocar de identidade e de vida com seu rival infantil. Apesar da origem comum, classe média, os dois personagens alcançam patamares sociais diferentes: o rival odiado torna-se comerciante próspero, bem sucedido no amor, embora no fundo profundamente infeliz como confessa num encontro posterior, arruinado, alcoolizado, que ele sempre sonhara, invejara a vida simples e feliz do outro colega. Moral da estória (se é que o filme tem uma mensagem machadiana): a Felicidade sempre está onde nós a pomos, mas nunca a pomos onde nós estamos...
                Quanto ao estilo narrativo, observamos desde as sequências iniciais, um diretor seguro de seu métier, com pleno domínio da técnica e linguagem cinematográficos, oferecendo uma aula de montagem de planos ao espectador que é fascinado pelo ritmo seguro imprimido à narrativa. E por falar em ritmo, esta é a palavra chave para definir o segredo da originalidade do filme. Tomando como leit motiv uma canção tradicional francesa (numa interpretação de Charles Trenet) sobre que fala “Love is Bloom”, o amor floresce, a vida explode, os ciclos da natureza e do universo seguem o fluxo do eterno retorno nietzschiano. A película sabe utilizar magistralmente os símbolos, sem hermetismos, nem lugares comuns, tudo flui com o frescor e o humor, o trágico e o cômico, realidade e fantasia se alternam, na medida certa, compondo um todo harmônico integrado a natureza e se explica que culmina na cena final quando as cinzas do personagem são espalhadas ao vento (porque tu és pó ao pó retornarás revertere ad locum tuum) realimentando o eterno ciclo da natureza. A vida é um conto narrado por um idiota, plena de som e fúria, sem nenhum significado? Ou a vida é uma paixão inútil, segundo Sartre, ou a Vida, apesar de aparentemente inútil é uma grande paixão, um Dom divino?
                O simbolismo do fogo aparece desde a sequência inicial do incêndio no berçário, o fogo na casa do vizinho, provocado pela irmã do personagem, que se revela mais determinada a atingir uma meta que o irmão inseguro, que vivia mais no plano da fantasia. O fogo como elemento destrutivo mas também regenerador e purificador, e símbolo da sexualidade exacerbada. Observa-se também a flor de plástico como símbolo da inocência perdida.
                Outro aspecto positivo no filme é a extrema sensibilidade na escolha dos intérpretes, não só adultos como crianças: o veterano francês Michel Bouquet,  as crianças têm desempenhos expressivos (observar a cena em que o personagem surpreende a irmã encontrando-se com o namorado, visto através de um trem que passa).
                Realidade e fantasia se mesclam tanto no filme como na vida real (o personagem idoso confunde os dois planos, o persona criança se identifica com o herói vingador do filme policial, Totó, que trucida seus inimigos numa visão maniqueísta da vida). O personagem adulto confunde uma jovem no estádio com a irmã morta e a esposa do rival pela qual se apaixona (pode haver maior vingança que roubar o objeto amoroso do rival, do pai substituto?) porque lembra a irmã com a qual teve na infância fantasias incestuosas, aliás o filme é pleno de sugestões psicanalíticas.
                O tema do herói e do homem comum (Toto le héros) é visto pela ótica infantil. Aqui o diretor revela um profundo conhecimento da psicologia infantil: o filme narrado pela ótica da criança em suas relações amorosas ou conflituosas com o mundo adulto e com as outras crianças é primoroso e correto na análise e compreensão do universo infantil. Creio que o diretor foi bem assessorado no estudo da psicologia infantil: a criança passa por várias etapas no seu desenvolvimento psicosexual, desde as primeiras sensações através das emoções primárias se comunica com o mundo adulto, as rivalidades entre as crianças que são vistas não como seres puros inocentes (podendo ser perversas como mostra a cena em que o grupo incita o deficiente mongolóide ao suicídio); os jogos sexuais dos irmãos (brincar de papai e mamãe).
                Outro traço a ressaltar é o humor que tempera a amargura do personagem principal exemplificado pela piada do irmão deficiente quando pergunta as horas, aliás, a construção desse tipo psicológico é de rara sutileza, rompendo o estereótipo do retardado que outras películas apresentam, ao mostrá-lo como ser sensível à natureza, capaz de perceber uma toupeira caminhando sob a terra. Em síntese, filme singular, sensível, profundo na compreensão da natureza humana e na análise da busca de um sentido para a vida. Recomendado a todos que se interessam por um cinema adulto. 
Por Maiolino de Castro Miranda

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