Resenha Cultural: Rocco e seus irmãos


                Filme fundamental na carreira do diretor L. Visconti, Rocco e seus irmãos constitui a máxima expressão dos elementos que configuram a 1ª fase da filmografia do diretor. Em Rocco, conflui a análise sociológica (origem e condições de emigração interna, marginalização do proletariado urbano), a descrição psicológica dos personagens (relação entre irmãos, sentimento de culpa, agressividade  e frustração) e a catarse do melodrama. Do mesmo modo, do padrão temático e narrativo observam-se alguns traços mais característicos de seus filmes anteriores, como a paixão destruidora (Obsessão, Senzo); a crônica documental (La Terra trema), a importância do papel materno na família meridional (Belíssima) e o ritmo musical da ação (Senzo).
                Por tudo isto, Rocco e seus irmãos se constrói como um modelo de um gênero singular que poderia chamar de “melodrama materialista”. Como nos filmes anteriores e alguns posteriores, Rocco nasce de um complexo literário. O próprio título encerra uma dupla referência: por um lado faz alusão a novela José e seus irmãos, de Thomas Mann. E por outra, o protagonista toma o nome do poeta mítico e novelista Rocco Scotellaro, originário da Lucania e reivindicador dos direitos dos camponeses. Mas, basicamente, Rocco se inspira nas novelas distantes entre si como A Ponte de Ghisolfa, de Giovani Testori e O Idiota, de Fedor Dostoievsky. Apenas inspiração inicial, porque o roteiro toma amplas liberdades. Testori, escritor milanês humanista e com preocupações sociais, centra a ação de sua novela que é um conjunto de relatos no setor industrial da cidade. Mas, além do ambiente, pouco conserva da mesma, exceto a cena da violação de Nádia e a briga entre os irmãos. No que se refere a Dostoievsky, Visconti traslada o triângulo formado pelo príncipe Aliocha Mishkin, Natasia e Rogoshia para Rocco, Nadia e Simone. A bondade messiânica do príncipe M. , como a de Rocco, fará deles as vítimas e até certo ponto é causa do desastre.
                Sobre estes esquemas e com o precedente da encenação de Uno sguardo dal ponte, Visconti, Suso Cecchi d’Amico, Pasquale Festa Campanile, M. Franciosa e Enrico Medioli redigiram o cenário modificado várias vezes até a versão definitiva. Visconti retoma em Rocco o tema iniciado em La terra trema enfrentando protagonistas semelhantes com novo mundo da sociedade industrializada. A miséria e a exploração de que eram objeto os Valastro são também motivo da imigração dos Parondi. Milão se apresenta como uma imensa vitrine onde tudo está ao alcance da mão, porém resguardado atrás de um cristal. A barreira do poder econômico só se alcança pelo milagre do dinheiro fácil. Reduzidos a cidadãos de segunda classe, o boxe significa a oportunidade fácil de ascensão social. A contraposição entre o Norte desenvolvido e a pobreza atávica do Sul entre os “polentoni” e os “viterroni” é também o eixo de “O Cristo parou em Éboli” de Francesco Rosi.
                Eliminado o primeiro episódio que se centrava na precária situação econômica da família Parondi e sua terra natal, e na morte do pai (presente apenas no medalhão de Rosaria), o filme se divide em cinco capítulos, que tem o nome de cada um dos irmãos, do maior ao menor. Facilmente pode-se reconhecer em cada irmão uma atitude representativa das diferentes posições adotadas pela população migrante diante da nova realidade urbana: Vincenzo, o mais velho, sem problemas de identidade nem grandes aspirações, adapta-se rapidamente à cidade. Simone, antítese dele, violento e instintivo, acabará provocando sua própria destruição.
                Rocco, peça-chave da união familiar, é vítima dos seus princípios nobres mas equivocados. Ciro, mais reflexivo, prepara-se para conseguir um emprego de acordo com sua capacidade e Luca, o caçula, significa a esperança no futuro, o possível regresso à terra natal, livre da humilhação dos despossuídos. Apesar do caráter ilustrativo de cada um dos personagens, diretor e roteirista contornam a demagogia e armam uma rede de sentimentos, que os torna seres humanos complexos e contraditórios. Visconti porém não faz uma mera investigação sociológica, pois entende que o social é precisamente a soma das individualidades.Se A Terra trema era um filme eminentemente coletivo e épico, em Rocco o coletivo é substituído pelo particular, a singularidade, e o épico pelo lírico. Só o personagem Ciro tem traços próprios do “herói positivo”, que Visconti julga o centro da trama, mas é em Rocco e Simone que cai o peso da ação. Uma tese de um certo didatismo esquerdista segundo a qual a chave da consciência de classe se encontraria na soma do trabalho com o estudo  pode ser vista no personagem Ciro, porém pouco desenvolvido dramaticamente.
                Rosaria, a mãe, magnificamente interpretada pela trágica Katina Paxinou, é a quintessência da mãe meridional de Belíssima, protege os filhos ao mesmo tempo em que conta com eles como força de trabalho a serviço do sacrossanto núcleo familiar, verdadeira razão de ser de sua existência. Rosaria ama mais que compreende seus filhos e está disposta a tudo para vê-los unidos “como os cinco dedos da mão”. Nadia (numa bela interpretação de Annie Girardot) originária de Cremona, alheia a qualquer vínculo familiar, vaga errante sem encontrar seu lugar e quando esse encontra seu lugar ao lado de Rocco, este cede a seu irmão. Nadia será o elemento desencadeador do conflito. Visconti descarta a imagem vampiresca destruidora apresentando-a como mais uma vítima que se imola como um Cristo feminino nas mãos de Simone. Rocco é o personagem mais puro e Simone o mais fraco apesar de sua agressividade. Tanto o bem quanto o mal são prejudiciais e paradoxais, pois Rocco é um Santo, mas vive num mundo onde não há mais lugar para eles. Sua piedade provoca a tragédia: boxeador, está sempre disposto a dar a outra face para ser humilhado e ofendido (Dostoievsky) e o boxe seria a sublimação de seu sentimento de culpa. Sacrificando-se pela unidade familiar, contribui involuntariamente para sua desintegração.
                Com o fatalismo de uma tragédia, os personagens evoluem conduzidos cegamente por paixão até a autodestruição. A partir de uma sangrenta “guerra de honra”, Visconti reúne neo-realismo e melodrama em busca de um lirismo total, absoluto. Para isto, recorre a técnicas teatrais e elabora peculiar ritmo dramático, composto de lentos crescendos que culminam em violência desgarrada e sublime. Paralelamente, a ação se realiza pela esplêndida fotografia em preto e branco de Giuseppe Rotunno e a inspirada música de Nino Rota. A trilha sonora inclui um tema central que acompanha as cenas românticas e adquire tons sombrios, jazzísticos, e canções dialetais de Lucania.
                Rocco é um filme ambíguo: drama e épico se contrapõem. O individual e o histórico são colocados em conflito, mas não é possível ver a resolução do conflito como representativo da intenção de Visconti. Em Visconti, há uma tensão constante entre crença intelectual na causa do progresso humano e uma nostalgia emocional por um mundo passado que está sendo destruído e pode ser uma ilustração de uma concepção de história na qual as mudanças são bem-vindas e inevitáveis. A estrutura dos filmes de Visconti é complexa (freqüentemente equivocadas), revelando um mundo duma perspectiva particular. Acima de tudo, seus filmes constituem obras de arte. Rocco é um canto doloroso sobre o tempo e a dificuldade de apreender o novo e o embrutecimento das relações sociais e afetivas no final do século.
                Luchino Visconti pertence, como O. Welles e A. Resnais, a um seleto elenco de grandes criadores que cedo adquirem reputação internacional. Não esperou muito, como Antonionni e Fellini, para ser consagrado. Seus filmes iniciais já nasceram clássicos,  precursores situados na escola neo-realista italiana. Cedo se libertou da herança do passado. Passível de inúmeras leituras: sociológica, psicanalítica, estruturalista, com influência do realismo crítico de Luckacs, das teorias gramscianas, sua estrutura complexa continua estimulando novos estudos. O crítico português João Bérnard viu influências da Ópera em sua construção (dirigiu Tosca, de Puccini); a exemplo de Bergman foi diretor teatral e cinematográfico. Visconti nasceu aristocrata, estudou música, pintura, direção teatral, ópera, mas fez do marxismo o projeto de sua vida. Esta dupla vertente contraditória influenciou toda a sua obra e seu estilo.
 

POR MAIOLINO DE CASTRO MIRANDA
PSIQUIATRA E PROFESSOR DO CURSO DE PSICOLOGIA (UFPA) aposentado

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