Figura 2: Em vermelho, a localização
do antigo Hospital da Caridade. Fonte: Google adaptado do Beatriz
Trindade, 2019.
Na Belém imperial, quando a
assistência à saúde não era uma obrigação do governo, este se valia das
instituições de caridade para as demandas de atendimento e internação a setores
menos favorecidos da sociedade local, já que, na época, os que tinham melhores
condições preferiam o tratamento domiciliar. Assim, o Hospital do Largo da Sé
se mantinha através de doações dos membros mais abastados da sociedade, que detinham
cargos na Irmandade da Misericórdia, além de dotações orçamentárias do governo
imperial e provincial. Com a expansão da cidade propiciada pelo aterro do
alagado do Piry, sem que houvesse investimentos em infraestrutura de
saneamento, os bairros da Campina e da Cidade (atualmente Campina e Cidade
Velha, respectivamente) e suas áreas periféricas tornaram-se o sitio propicio para o
alastramento de doenças.
Primeira epidemia
Na Belém dos oitocentos, a primeira
epidemia a assolar a cidade foi a de febre amarela, originada na Bahia em 1849,
alastrando-se para o Rio de Janeiro e atingindo a cidade de Belém no ano de
1850, chegando aqui através da embarcação Póllux,
vinda da cidade de Pernambuco, fazendo mais de 12000 vítimas do contágio, 75%
da população, entre janeiro e julho do mesmo ano. Sabe-se que as autoridades da
época já tinham conhecimento da iminente contaminação, bem como a população que
já esperava insegura pelo flagelo. A falta de prevenção sanitária nos portos da
capital permitiu que a dita embarcação trouxesse passageiros contaminados que
espalharam a doença em Belém. Dados oficiais do governo provincial apontam 506
mortos, 5% da população na época, mas sabe-se que o controle de mortalidade não
era exato, logo se subtende que o número de vítimas fatais possa ter sido
consideravelmente maior.
Segunda epidemia
A varíola já era presente em Belém
desde o século XVIII, porém, por desleixo ou ato de sabotagem, em 1851 surge um
novo surto através da contaminação das lâminas de pus vacínico trazidas da
Província da Bahia para combater a doença que por aqui se espalhava.
Os primeiros vacinados foram decerto
os focos de contágio da população, cuja epidemia estendeu-se de maio de 1851 a
setembro de 1852, oficialmente registrando 598 vítimas fatais, 5% da população
na época que ainda se recuperava das perdas causadas pela febre amarela ainda
atuante. Cada uma dessas infecções viu na Belém Imperial as condições
sanitárias e urbanas propícias para seu alastramento, somadas à ausência de
conhecimento científico para o tratamento. Este cenário só passou a ter a
devida consideração a partir do terceiro surto epidêmico, o de Cólera.
Terceira epidemia
Em maio do ano de 1855, as primeiras
vítimas da epidemia de cólera-morbus
chegam em Belém na embarcação portuguesa Defensor,
vinda diretamente de Portugal. Naquele período, a Europa estaria
enfrentando uma das piores crises epidêmicas da sua história relacionada à
Cólera, cujos malefícios eram aterradores e os doentes afligidos por ela eram
comparados a mortos vivos, dadas as características atribuídas aos sintomas que
tornavam o doente uma figura desprovida de identidade física e mental.
Médicos da época apontaram que mais
da metade da população da capital havia sido afetada pela moléstia e nos dois
primeiros meses os mortos oficiais chegavam a 453; a epidemia atingiu seu ápice
no início do ano de 1856. Nesse cenário, o Hospital da Caridade era a primeira
opção para os pobres enfermos na capital, não sendo suficiente sua estrutura
para atender a gigante demanda que cresceu em ritmo exponencial desde a
primeira epidemia em 1850.
Medidas sanitárias
Com a união de forças entre poder
público e a Santa Casa de Misericórdia, aliada ao povo, o panorama sanitário da
cidade passa a mudar. Os estudos científicos avançavam na tentativa de
identificar a causa e modo de propagação das doenças, embora houvesse intensos
debates nos jornais da época em que se verificava o antagonismo entre a
medicina popular e as recomendações médicas. A fiscalização que receberam as
embarcações que em Belém atracaram com os contagiados de febre amarela (1850) e
cólera-morbus (1855) foi, na época, deficiente - pela ausência de locais
específicos de quarentena (como os sanatórios) para os acometidos pelas
moléstias e pelo comportamento omisso do capitão do primeiro caso, que não
informou a contaminação da embarcação.
Houve um grande debate sobre a
adoção de quarentenas indicadas pelos médicos atuantes na época, enfrentadas
pela classe política, que não admitia perder lucros no sistema comercial da
cidade. O Estado tornava-se impotente para dar assistência aos acometidos pelas
epidemias, ficando a população refém das polêmicas veiculadas em artigos
inflamados nos periódicos locais. Os prejudicados pela ideia da quarentena defendiam
a tese de que a doença se propagava pelo ar, em desacordo com personalidades
médicas da época que atuavam no Hospital da Caridade (como o Dr. José da Gama
Malcher e Camilo do Vale Guimarães), os quais alegavam que tais doenças se disseminavam
por meio do contato humano.
Como meio de conter a doença, médicos
passaram a exercer um controle no cotidiano das camadas mais pobres da população,
prestando atenção em deslizes de higiene. O combate às mazelas infecciosas
ficou mais rígido, sendo a vacinação impositiva para onde houvesse suspeitas de
focos infecciosos ao final do século XIX, uma vez que era o meio profilático
mais efetivo.
É preciso manter os setores mais
indefesos da sociedade sob atenção redobrada por parte do poder público e dos
corpos hospitalares, como naquela época. A Santa Casa de Misericórdia foi
convocada pelo poder do ofício e pelo Estado a prestar múltiplos serviços
durante cada fase epidêmica, estando sempre no mais elevado grau de dificuldade
devido à ausência de recursos financeiros para tratamento de seus pacientes
naquele período, tendo inclusive que vender imóveis de sua propriedade.
Talvez seja este hospital a maior
ausência arquitetônica na história da saúde do Pará e também da Região Norte do
país, uma vez que o edifício foi demolido em 1978. O apagamento do Hospital da
Caridade, ao lado da Casa das 11 janelas, leva também à perda de referência ao
trabalho de médicos, esculápios, enfermeiros e boticários que deram a própria
vida pela saúde nesta cidade, bem como ocorre agora, tanto no Brasil como no
mundo. Enquanto o poder público e estes médicos lutam para manter a todos nós
saudáveis e a salvo, fiquem em casa.
Melhores dias virão.
PARA SABER MAIS:
BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará. 1999. 264f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
BELTRÃO, J. F.; MIRANDA, C. S.; HENRIQUE, M. C. (2011). Hospital Bom Senhor Jesus dos Pobres in Inventário Nacional do Patrimônio Cultural da Saúde: Bens Edificados e Acervos - Patrimônio de/em Saúde em Belém-Pará, Belém, Universidade Federal do Pará - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz. CD-ROM.
COSTA, Magda Nazaré Pereira da. Caridade e saúde pública em tempos de epidemias. Belém 1850 - 1890 / Magda Nazaré Pereira da Costa; Orientador: Aldrin Moura de Figueiredo. 2006. UFPA. Disponível em: http://pphist.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/dissertacoes/Ms%202004%20MAGDA%20NAZAR%C
3%89%20PEREIRA%20DA%20COSTA.pdf
MIRANDA, Cybelle Salvador; BELTRÃO, Jane Felipe; HENRIQUE, Márcio Couto; BESSA, Brena Tavares. Santa Casa de Misericórdia e as políticas higienistas em Belém do Pará no final do século XIX. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.22, p.00 - 00, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702015000200013&script=sci_arttext&tlng=pt
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