CARIDADE EM TEMPOS DE EPIDEMIA: O HOSPITAL BOM JESUS DOS POBRES ENFERMOS EM BELÉM

Cristhian Cabral
Cybelle Miranda


A história de nosso tempo vai ser marcada por erupções recorrentes de doenças recém-descobertas [...], epidemias de moléstias que estão migrando para novas áreas [...], moléstias que adquiriram importância através de tecnologias humanas [...], e moléstias que saltam de animais para seres humanos devido à destruição dos habitats locais pelo homem (MANN, Jonathan M. apud GARRETT, Laurie. A Próxima Peste. As novas doenças de um mundo em desequilíbrio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995: 10).



Introdução

Os hospitais atuam como protagonistas em tempos de grandes crises na saúde - tais espaços de assistência à saúde são monumentos carregados de memórias e vivências, recheados de aspectos culturais de diversos períodos da história que repercutem no presente, seja como memória, seja em situações cotidianas relacionadas aos cuidados à população pelos saberes médicos. Neste momento da história, no qual o planeta passa por uma grave crise caracterizada pela pandemia global do COVID-19, popularmente conhecido como o novo CORONA VÍRUS, é imprescindível fazermos um breve resgate da memória epidemiológica de Belém do Pará, especificamente em meados do século XIX, quando a cidade foi severamente acometida por três grandes surtos epidemiológicos em um curto período de tempo, que necessitou de grande mobilização social para serem controladas. Como diria um pensador, a história sempre se repete, não de modo idêntico, mas como farsa.
Frente ao cenário de calamidade pública, havia naqueles tempos apenas um hospital assistencial de caráter público, o Hospital da Caridade.  O Hospital da Caridade, inicialmente batizado de Hospital Senhor Bom Jesus dos Pobres foi encomendado pelo Frei Caetano Brandão (1740-1805), sexto bispo da diocese de Belém, em 1785 e concluído no ano de 1787. A intenção era a substituição de uma pequena edificação de taipa de pilão pertencente à Santa Casa de Misericórdia (fundada aqui em 24 de fevereiro de 1650), que servia como hospital e não era suficiente para atender a necessidade da população que, segundo Frei Caetano Brandão, padecia por toda variedade de doenças, sejam as trazidas pela colonização ou endêmicas da região.
Figura 1: fachada do Hospital da Caridade de Belém, PA.
Fonte: Acervo digital do IPHAN. 
Com a implantação deste hospital no Largo da Sé (atual praça Frei Caetano Brandão), finalmente a cidade pôde ser assistida sob os cuidados da Confraria da Caridade até o momento em que o Hospital passou para as mãos da Santa Casa de Misericórdia Paraense, em 1807. O Hospital da Caridade seguiu atendendo a população majoritariamente carente da Província; nesse grupo se incluíam os mais pobres atingidos por alguma moléstia, os idosos, portadores de deficiências físicas ou psicológicas e os desajustados sociais, mendigos e causadores de desordem. 
Figura 2: Em vermelho, a localização do antigo Hospital da Caridade. Fonte: Google adaptado do Beatriz Trindade, 2019.
Na Belém imperial, quando a assistência à saúde não era uma obrigação do governo, este se valia das instituições de caridade para as demandas de atendimento e internação a setores menos favorecidos da sociedade local, já que, na época, os que tinham melhores condições preferiam o tratamento domiciliar. Assim, o Hospital do Largo da Sé se mantinha através de doações dos membros mais abastados da sociedade, que detinham cargos na Irmandade da Misericórdia, além de dotações orçamentárias do governo imperial e provincial. Com a expansão da cidade propiciada pelo aterro do alagado do Piry, sem que houvesse investimentos em infraestrutura de saneamento, os bairros da Campina e da Cidade (atualmente Campina e Cidade Velha, respectivamente) e suas áreas periféricas  tornaram-se o sitio propicio para o alastramento de doenças.
Primeira epidemia
Na Belém dos oitocentos, a primeira epidemia a assolar a cidade foi a de febre amarela, originada na Bahia em 1849, alastrando-se para o Rio de Janeiro e atingindo a cidade de Belém no ano de 1850, chegando aqui através da embarcação Póllux, vinda da cidade de Pernambuco, fazendo mais de 12000 vítimas do contágio, 75% da população, entre janeiro e julho do mesmo ano. Sabe-se que as autoridades da época já tinham conhecimento da iminente contaminação, bem como a população que já esperava insegura pelo flagelo. A falta de prevenção sanitária nos portos da capital permitiu que a dita embarcação trouxesse passageiros contaminados que espalharam a doença em Belém. Dados oficiais do governo provincial apontam 506 mortos, 5% da população na época, mas sabe-se que o controle de mortalidade não era exato, logo se subtende que o número de vítimas fatais possa ter sido consideravelmente maior.
Segunda epidemia
A varíola já era presente em Belém desde o século XVIII, porém, por desleixo ou ato de sabotagem, em 1851 surge um novo surto através da contaminação das lâminas de pus vacínico trazidas da Província da Bahia para combater a doença que por aqui se espalhava.
Os primeiros vacinados foram decerto os focos de contágio da população, cuja epidemia estendeu-se de maio de 1851 a setembro de 1852, oficialmente registrando 598 vítimas fatais, 5% da população na época que ainda se recuperava das perdas causadas pela febre amarela ainda atuante. Cada uma dessas infecções viu na Belém Imperial as condições sanitárias e urbanas propícias para seu alastramento, somadas à ausência de conhecimento científico para o tratamento. Este cenário só passou a ter a devida consideração a partir do terceiro surto epidêmico, o de Cólera. 
Terceira epidemia
Em maio do ano de 1855, as primeiras vítimas da epidemia de cólera-morbus chegam em Belém na embarcação portuguesa Defensor, vinda diretamente de Portugal. Naquele período, a Europa estaria enfrentando uma das piores crises epidêmicas da sua história relacionada à Cólera, cujos malefícios eram aterradores e os doentes afligidos por ela eram comparados a mortos vivos, dadas as características atribuídas aos sintomas que tornavam o doente uma figura desprovida de identidade física e mental.
Médicos da época apontaram que mais da metade da população da capital havia sido afetada pela moléstia e nos dois primeiros meses os mortos oficiais chegavam a 453; a epidemia atingiu seu ápice no início do ano de 1856. Nesse cenário, o Hospital da Caridade era a primeira opção para os pobres enfermos na capital, não sendo suficiente sua estrutura para atender a gigante demanda que cresceu em ritmo exponencial desde a primeira epidemia em 1850.
Medidas sanitárias
Com a união de forças entre poder público e a Santa Casa de Misericórdia, aliada ao povo, o panorama sanitário da cidade passa a mudar. Os estudos científicos avançavam na tentativa de identificar a causa e modo de propagação das doenças, embora houvesse intensos debates nos jornais da época em que se verificava o antagonismo entre a medicina popular e as recomendações médicas. A fiscalização que receberam as embarcações que em Belém atracaram com os contagiados de febre amarela (1850) e cólera-morbus (1855) foi, na época, deficiente - pela ausência de locais específicos de quarentena (como os sanatórios) para os acometidos pelas moléstias e pelo comportamento omisso do capitão do primeiro caso, que não informou a contaminação da embarcação.
Houve um grande debate sobre a adoção de quarentenas indicadas pelos médicos atuantes na época, enfrentadas pela classe política, que não admitia perder lucros no sistema comercial da cidade. O Estado tornava-se impotente para dar assistência aos acometidos pelas epidemias, ficando a população refém das polêmicas veiculadas em artigos inflamados nos periódicos locais. Os prejudicados pela ideia da quarentena defendiam a tese de que a doença se propagava pelo ar, em desacordo com personalidades médicas da época que atuavam no Hospital da Caridade (como o Dr. José da Gama Malcher e Camilo do Vale Guimarães), os quais alegavam que tais doenças se disseminavam por meio do contato humano.
Como meio de conter a doença, médicos passaram a exercer um controle no cotidiano das camadas mais pobres da população, prestando atenção em deslizes de higiene. O combate às mazelas infecciosas ficou mais rígido, sendo a vacinação impositiva para onde houvesse suspeitas de focos infecciosos ao final do século XIX, uma vez que era o meio profilático mais efetivo.
É preciso manter os setores mais indefesos da sociedade sob atenção redobrada por parte do poder público e dos corpos hospitalares, como naquela época. A Santa Casa de Misericórdia foi convocada pelo poder do ofício e pelo Estado a prestar múltiplos serviços durante cada fase epidêmica, estando sempre no mais elevado grau de dificuldade devido à ausência de recursos financeiros para tratamento de seus pacientes naquele período, tendo inclusive que vender imóveis de sua propriedade.
Talvez seja este hospital a maior ausência arquitetônica na história da saúde do Pará e também da Região Norte do país, uma vez que o edifício foi demolido em 1978. O apagamento do Hospital da Caridade, ao lado da Casa das 11 janelas, leva também à perda de referência ao trabalho de médicos, esculápios, enfermeiros e boticários que deram a própria vida pela saúde nesta cidade, bem como ocorre agora, tanto no Brasil como no mundo. Enquanto o poder público e estes médicos lutam para manter a todos nós saudáveis e a salvo, fiquem em casa.
Melhores dias virão. 

PARA SABER MAIS:
BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará. 1999. 264f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:

BELTRÃO, J. F.; MIRANDA, C. S.; HENRIQUE, M. C. (2011). Hospital Bom Senhor Jesus dos Pobres in Inventário Nacional do Patrimônio Cultural da Saúde: Bens Edificados e Acervos - Patrimônio de/em Saúde em Belém-Pará, Belém, Universidade Federal do Pará - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz. CD-ROM.

COSTA, Magda Nazaré Pereira da. Caridade e saúde pública em tempos de epidemias. Belém 1850 - 1890 / Magda Nazaré Pereira da Costa; Orientador: Aldrin Moura de Figueiredo. 2006. UFPA. Disponível em: http://pphist.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/dissertacoes/Ms%202004%20MAGDA%20NAZAR%C
3%89%20PEREIRA%20DA%20COSTA.pdf

MIRANDA, Cybelle Salvador; BELTRÃO, Jane Felipe; HENRIQUE, Márcio Couto; BESSA, Brena Tavares. Santa Casa de Misericórdia e as políticas higienistas em Belém do Pará no final do século XIX. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.22, p.00 - 00, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702015000200013&script=sci_arttext&tlng=pt

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

BELÉM DOS ECLETISMOS – Elementos decorativos marcam as casas burguesas no bairro de Nazaré

SANATÓRIO Vicentina Aranha: entre o passado assistencial e o uso público

DISSERTAÇÃO CINE ÓPERA- Belém-PA: arquitetura como microcosmo de memórias subterrâneas